segunda-feira, 26 de março de 2007

O Tempo de Gessy

Quando nas primeiras horas do ano de 1959, Fidel Castro e seu fiel escudeiro “Che” Guevara adentraram vitoriosos pelas ruas de Havana pondo fim à ditadura de Fulgêncio Batista, dava pra perceber que não seria um ano qualquer. Para Gessy, porém, o que importava eram as provas do vestibular para Odontologia. Enquanto acendia um cigarro, naquele janeiro quente e ensolarado, o jovem craque do Grêmio sabia que era peça importante na viagem do time a Buenos Aires. O compromisso era um amistoso contra o Boca Juniors, mas Gessy precisava fazer as provas. E agora? O moço de Uruguaiana pensava em pedir dispensa, que o Foguinho botasse outro em seu lugar. Só que seu Osvaldo Rolla não tinha a menor intenção de liberar Gessy. Ficou decidido que ele faria as provas e no dia seguinte iria para a capital da Argentina, em uma situação emergencial.

Assim como no Brasil, no país vizinho respirava-se democracia. O presidente Arturo Frondizi governava com relativa serenidade e as atenções do povo podiam voltar-se para o futebol. O campeão da temporada seria o San Lorenzo, comandado por um artilheiro fantástico, José Sanfilippo. Isso não quer dizer que a parada seria fácil para o tricolor. O Boca do técnico José “El Charro” Manuel Moreno era uma equipe perigosa e matreira. Julio Elias Mussimessi, “El arquero cantor”, defendia o arco com a mesma habilidade com que vocalizava lindas canções correntinas. Mais à frente, uma linha média de arrepiar: Lombardo, Rattin e Mouriño. No ataque Osvaldo “Motoneta” Nardiello fazia belas tabelas com Javier Ambrois, um uruguaio que ficou famoso também no Brasil, atuando no Fluminense alguns anos antes. Já o Grêmio era o atual campeão gaúcho, e seu ataque com Gessy, Milton, Juarez e Vieira era um verdadeiro ninho de cobras.

Gessy, alheio a tudo isso, sonhava. Seu caráter excêntrico era um complemento perfeito para o seu futebol. Autor de jogadas geniais, nunca deixava que suas façanhas lhe subissem à cabeça. Pouco comemorava os gols. Sua fisionomia era séria, seu pensamento um mistério. Não se sabe se naquele ano foi assistir ao filme “Orfeu Negro”, produção francesa que venceu a Palma de Ouro em Cannes. Embalada com temas de Tom Jobim , Antonio Maria e Vinícius de Moraes, essa história de amor tinha também a participação de Breno Mello, jogador de futebol campeão gaúcho com o Renner em 54. O último ano daquela década ainda traria consigo o desaparecimento de Heleno de Freitas, assim como Gessy, um craque de temperamento forte. E Billie Holiday partiria vítima de cirrose hepática, após breve período em um hospital no Harlem. Mas isso seria mais tarde. Por enquanto, o ano estava apenas começando, e Gessy só pensava no vestibular. Queria ser dentista e poder tomar sua cervejinha em paz. É claro que ele gostava do Foguinho, do Milton, do Juarez e de todo o ambiente do Grêmio. Mas sua decisão já estava tomada. Largaria o futebol para dedicar-se à odontologia.

Chega o dia do jogo. Mesmo de ressaca, Gessy desembarca em Buenos Aires e participa da peleja. De ressaca? Sim, afinal ele havia passado nas provas e uma comemoração foi inevitável. Seu marcador foi Rattin. Antonio Ubaldo Rattin, uma das bandeiras do Boca de todos os tempos, um caudilho tenaz na marcação e distribuidor do jogo, como deveria ser o número 5 de então. Alguns anos antes, na sua estréia pelo clube azul e ouro, o jovem Rattin é figura de relevo contra um River Plate cheio de craques como Labruña, Nestor Rossi e Sívori. Mas Gessy não tinha vindo de tão longe para pouca coisa. Com quatro gols seus, o tricolor gela a Bombonera, fechando um capítulo de antologia dentro do nosso futebol.

O ano segue. Surge o Aimoré de Carlos Froner: Suli, Soligo, Afonso, Toruca e Carlos; Mengálvio e Fernando; Telmo, Marino, Abílio e Gilberto Andrade. Em Nova Iorque, o sueco Ingemar Johansson derrota Floyd Patterson por nocaute no terceiro assalto, e é o novo campeão mundial na categoria peso-pesado. E Gessy continuaria a marcar gols sensacionais e a fazer jogadas estupendas, até cumprir sua promessa e encerrar a carreira com apenas 26 anos de idade.

Lucio Saretta

Um comentário:

@snel disse...

Chê, me escorreu uma "lágrema" dos olho. Que texto fantástico. Meu avô fala que nunca viu jogador igual ao Gessy. Por onde será que anda este sujeito? Será que ta vivo? Sera que não? No livro do Grêmio, escrito pelo Profº Ostermann, tem um desenho do golaço que ele fez no Boca, neste jogo. Aliás, a primeira equipe estrangeira a ganhar deles na Bombonera. Um texto desses me faz agradecer porque sou gremista todos os dias.